Literatura e Mentiras
Literatura e Mentiras
Sobre o livro Mentiras, de Felipe Franco Munhoz
Texto extraído do blog :
uantas mentiras podem ser contadas num livro? A primeira delas já é um pacto que estabelecemos ao acreditar na história que está sendo escrita. A ficção pode ser mais real que o real, é mentira, mas é real — que jogo!
“Mentiras não é ficção, nunca foi. A ficção e o homem são uma coisa só. Você não entende, chamá-lo de ficção é a maior ficção de todas”
Num café imaginário, Felipe e Philip conversam sobre o livro que se escreve enquanto eles conversam — Mentiras é um livro em tempo real. O Philip, com ph mesmo, é Philip Roth, convocado ali para auxiliar na composição do livro, e também para ouvir as queixas, as dúvidas e bater papo sobre diversos livros da literatura mundial. Teria interlocutor melhor que esse? Que tarefa encarou (agora o autor mesmo) Felipe Franco Munhoz, ao ler toda obra desse gigante escritor americano para compor sua estreia, e não bastasse isso, ele ainda escreveu todo o livro em forma de diálogo!
Ler um livro todo composto dessa forma é uma experiência interessante, porque apesar de se assemelhar à uma construção de um texto teatral na proposta, na composição o resultado é outro, pois os cenários, as características das personagens e até o fluxo de pensamento tiveram que caber ali depois do travessão, e ao ouvido do leitor soa como uma conversa natural e dinâmica, os períodos e cenas serem curtos também auxiliam nessa fluidez do texto.
Quando Felipe não está conversando com Philip, está no quarto de Thaís, a Faunia fatal de A Marca Humana, que o devora e entrega-se quase inteira à ele, seu corpo e seu passado nus, expostos. Ela tem um quê de Caddy também de O Som e a Fúria. Uma trajetória marcada por superações que ela faz questão de demarcar, mas sobretudo por abusos e traumas do passado que tornam-se matéria bruta para o escritor Felipe, que usa e abusa em sua trama. Fica o alerta: nunca conte muito sobre você ou sobre sua história, para um escritor! Prestem atenção nisso e também no fato de que, na casa dela, sempre faz muito frio, tente entender no final o por quê [risos]!
Depois surge Marina “mar de minha sina, morfina dessa carne. Minha morte, minha ruína. Ma-ri-na: os lábios explodindo, a língua cambaleando pela boca” — descrição sonoramente adaptada de Lolita — mas só pela voz de Felipe; ela não tem diálogos e só aparece quando é mostrada a composição de suas cenas à Philip. Contrasta com a católica Thaís por ser judia e por dar um pé na bunda de Felipe, que fica obcecado com o término, fato que o leva a transformar-se gradativamente num judeu ortodoxo. Hilária é a cena da primeira visita de Felipe à uma sinagoga, ao abaixar-se sua quipá despenca no chão à todo momento, como se para ser judeu, ele precisasse primeiro a aprender a fixar esse símbolo em seu cabelo.
No teatro Beckett demoliu a quarta parede, fazendo seus personagens dirigirem-se a nós espectadores para nos darmos conta da ilusão que se desenrolava. Essa imagem é para mim mais significativa do que dizer metaficção. Mais ainda porque vemos Felipe e Philip observando Thaís e Marina, tecendo considerações sobre elas, sobre como escrever aquelas cenas, refletindo sobre formas de reproduzir ou não a oralidade, entre outras questões do fazer literário, e mesmo sobre si mesmos enquanto personagens — quase uma fractal. Philip, à certa altura revela à Thaís:
“-Este lugar querida, é estranho porque não existe [risos]. Lugar mais estranho. Essa chuva incessante lá fora, incessante há meses; é minha casa, eu só existo dessa forma neste café. E vou mais longe: o Felipe que você conhece, da forma que você conhece, só existe em sua cama. E vou mais longe ainda: o Felipe da forma como nós conhecemos, só existe no papel.” P. 200
Além de esclarecer à personagem que ela é uma personagem de modo Pirandelliano, também acaba dizendo que o que conhecemos das pessoas que nos cercam também é uma versão delas mesmas para nós. Somos também ficções de nós mesmos!
Por fim, não deixaria de haver reflexões sobre o que é escrever, separo algumas interessantes abaixo.
- Escrever é tecer e é travesseiro — partindo de Lobo Antunes que disse:“O livro é o travesseiro que o escritor vai fazendo, durante a vida, para se deitar.” Tecer com certeza pode ser um modo de se referir ao trabalho que teve Felipe Franco Munhoz — liga diferentes pontos, usa e abusa de diferentes linhas-frases-trechos-citações para compor o travesseiro que descansa no final. Nessa tessitura/costura aparecem dois escritores que antes de tudo são leitores. Em algumas entrevistas Felipe Franco disse que foi à todas as edições da Festa Literária Internacional de Paraty, a famosa FLIP, e isso me fez pensar que os diálogos entre Philip e Felipe-personagem são reflexo dessa experiência do Felipe-autor que presenciou diversos diálogos entre escritores nas mesas de debate.
- Escrever é cavar
“- Do começo ao fim leva quanto tempo?
- Vários meses, talvez anos. Várias insônias
- E há quanto tempo você trabalha nisso?
- O tempo todo, é um bom ofício. A gente consegue pensar em tanta coisa. Mas é trabalhoso, doloroso. Está começando a incomodar minha coluna, horas sentado, curvado. Tudo para deixar a cova bem reta, com fundo liso.” P. 12 e 13
Seja para desenterrar do passado algo que faça sentido e oriente ou atormente as personagens, seja para enterrar algo e deixar ali, para ser descoberto, para virar plot-twist. Cavar entre milhões de palavras, sentir o peso de rearranjar terra-texto. A imagem desse remexer braçal faz muito sentido para a atividade literária.
- Escrever é expor a contradição — como todo bom livro, não pode haver certezas absolutas e problemas fáceis:
“- Philip, qual a missão do escritor, do artista? Igualzinha há séculos. Continua sendo a de garantir a nuance, elucidar a complicação, sugerir a contradição. E não apagar a contradição. Eu poderia apagar esta conversa, agora fui desmascarado. No entanto, a missão é não negar a contradição, mas sim ver onde, no interior da contradição, encontra-se o ser humano atormentado. Levar em conta o caos, garantir que ele se manifeste.” | P. 47
Para finalizar, o reforço na ideia da missão do escritor, que parece tão simples, só o digitar diante de uma tela, o deslizar de uma caneta na folha em branco, só o esperar sentado a musa inspiradora… E no entanto, uma resposta-manifesto:
(…) Bem aqui na ficção estou limitado a todas as formas possíveis Para quem olha de fora, parece uma vida de liberdade. Sem horários, sem obrigações; mas quando estamos escrevendo, o que acontece?
- Tudo é limitação
- Rituais, temas, sentidos. É uma prisão. É como se a partitura rupestre do nosso crânio esbarrasse em uma nota fora de escala o tempo todo. Isso é brutal. Ser lembrado das próprias limitações, é terrível; se você gosta disso, não há melhor trabalho. E não temos obrigações? Piada. São as mais ferozes, por serem autoimpostas. Quero uma ligação ativa com a vida, e quero isso agora. Quero uma ligação ativa comigo mesmo. Si maior. Lá maior. Estou cheio de canalizar tudo para o meu texto. Quero a coisa real. a coisa crua, não para escrever sobre ela, mas por ela mesma”.| P. 131
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