Trechos do Livro "Mentiras"








Mentiras  
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·         Felipe MunhozEscritor
Trecho extraído de Mentiras, romance inédito de Felipe Franco Munhoz:
(O romance Mentiras -- inspirado na obra de Philip Roth -- é escrito inteiramente em diálogos entre três personagens: Philip, Felipe e Thaís, amante de Felipe. Enquanto Felipe e Philip sabem que um livro está acontecendo, Thaís acredita ser uma pessoa real. Nesse campo de diálogos metaficcionais, são discutidos temas como amor, religião e literatura. No trecho a seguir, o personagem Felipe conversa com o personagem Philip.)


- Passei a manhã inteira elaborando essa última cena. Desde o café; solitário.
- Outro pequeno esboço de felicidade?
- Sem felicidade, desta vez.
- Essas cenas não eram transcritas de situações reais? Para treinar diálogos?
- Mais ou menos. [risos] Transcrição, transcrição, nunca é. A ficção e o homem.
- Uma coisa só.
- Você entende perfeitamente. Vamos lá? Anotei aqui, no guardanapo.
ELA
Como está o livro?
ELE
Bem. Acabei a primeira versão, fechei todos os diálogos. Vamos brindar.
ELA
Primeira versão?
ELE
Não parei de vez com o trabalho.
ELA
Escrevendo bastante?
ELE
O tempo todo.
ELA
O tempo todo? (Rindo) Você não dorme, não?
ELE
[risos] Não.
ELA
Quando vai me mostrar?
ELE
Logo.
ELA
Logo quando?
ELE
Não sei, amor. Não está pronto. Ainda preciso revisar e revisar.
ELA
Você nunca me mostra. É sobre judaísmo, não é? Quem sabe eu possa ajudar.
ELE
Já ajudou bastante.
ELA
Como assim?
ELE
Marina é personagem também.
ELA
Personagem? Como assim?
ELE
Eu gosto tanto de você, tanto.
ELA
Não! (O ponto de exclamação) Que história é essa?
ELE
Esta? Mentiras.
ELA
Você disse Marina é personagem.
ELE
Escrevi um pouco sobre o que estamos vivendo.
ELA
Mas Marina? Meu nome está no livro?
ELE
Sim, por quê?
ELA
Nome e sobrenome? Sim? Eu quero que você tire! (não se assemelha a um
ameaçador dedo em riste?)
ELE
Tirar? Por quê?
ELA
Não quero meu nome em um livro. Não acho isso legal, não acho legal, quero que
você tire. Ei, escute. Você vai?
ELE
Não esperava isso.
ELA
Escute. Estou falando sério.
ELE
Bom. Tudo bem, eu troco. Bergman, Berman, Coleman, Freudman. Basta ter as
mesas sílabas, o mesmo final. Glassman, Goldman. Viu? Shatman, Shitman,
Fuckman, Youman é só um nome. Eu simplesmente troco na última revisão.
Basta o mesmo número de sílabas e man no final. Tanto faz, é só um nome.
ELA
Até com isso você se preocupa? Que exagero. Calma, não precisa ficar bravo. Se
quiser eu ajudo você. Escolho um nome bem judaico. Pode ser? Um nome bem
judaico.
Eles terminam o jantar caro, escolhido a dedo, em silêncio. Ele havia passado o dia selecionando músicas para a ocasião, arrumando a mesa, colocando garrafas de vinho na geladeira. Comemoravam a primeira versão concluída do livro Mentiras, ainda sem saber sobre as próximas infinitas minutas. Ela diz que precisa ir, logo que termina a última garfada Tenho um aniversário. Ele, desolado, ainda espera um convite para acompanhá-la. Nem mesmo isso. Nem mesmo o convite. Neste momento não é Mahler que chora na vitrola, nem mesmo é uma vitrola, é o reprodutor de arquivos no computador. E da música, completamente envolvida pela situação, nada se pode escutar. Sobre a mesa: a única garrafa de vinho que foi aberta, Mogen David, pela metade; os talheres mortos sobre pratos vazios, amarelos do molho. Ela se levanta e vai embora.


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Lançamento de ‘Mentiras’, de Felipe Franco Munhoz





Techo extraído do site:


Por Felipe Franco Munhoz *
*
O trecho acima é parte do romance Mentiras (Nós, 204 págs.), de Felipe Franco Munhoz, que tem como personagem o americano Philip Roth e que será lançado esta noite, na Livraria da Vila ( (rua Fradique Coutinho, 915, Vila Madalena, São Paulo/SP, 18h30\21h30)


– Não está com frio?
– Hoje não. É a sua vez. Lençol?, cobertor?
– Obrigado.
– O que você pensa de mim?
– Você é bonita.
– Só isso?
– Penso outras coisas também.
– Por exemplo?
– Não sei explicar.
– Então o publicitário sabe falar sobre a aparência. Como se eu fosse um produto, um anúncio Compre, é bonita.
– Não veja por esse ângulo. Explicar o que penso a respeito de você; falta convívio.
– Tudo bem. Quer saber mais? Pergunte. Vamos lá.
– Olha.
– Mudei-me para a capital em busca de uma vida melhor. Meu pai também é advogado. Quando me formei, tudo já estava decidido. Eu trabalharia no escritório dele, herdaria a boa clientela. Não. Decisão rejeitada. Estou aqui há oito anos, batalhando há oito anos. Batalhando no escritório, batalhando no apartamento. Ah, café; hoje não tenho bolo, mas passei um café antes de você chegar. Quentinho.
– Aceito. Mas a vida, então, não seria ruim.
– Não. Disse Melhor por querer algo a mais. Eu pego. Viu meu chinelo? No interior, parece que nada muda.
– Tudo imóvel. Tudo se repete o tempo todo: no cotidiano, nas gerações; o tempo se repete.
– Não estou certa? Achei.
– Em parte. No interior, tudo se repete, mas repete com precisão o que acontece nas grandes cidades. Ou, pode-se dizer, o que se repete nas grandes cidades. Consegue me ouvir daí? No microinterior, temos um médico, um bar, um restaurante: a rotina. Ainda no interior, mas em regiões mais populosas, tudo vai aumentando. Até chegarmos na metrópole, megalópole; reflexos que dilatam. Mudam certos costumes, conceitos, maneiras de falar. Mas a tristeza por perder quem se ama é igual, as angústias do homem são as mesmas.
– Isso é um tanto amargo. [risos] Só falta dizer que toma café sem açúcar.
– Sem açúcar, obrigado. Além do mais, há um trecho de J. Salter: Não sabia que a verdadeira felicidade é ter a mesma coisa o tempo todo. Fato que ninguém percebe. E os pequenos momentos de felicidade, que deveriam tomar conta de nós, continuam existindo inacessíveis dentro dos dias.
– Nossa. A verdadeira felicidade. É. Sabe, amor, existe algo que nunca menciono. Sempre a versão Em busca de uma vida melhor. Mentira. Chega.
– Mentira?
– Eu não conseguia ficar perto do meu pai. Às vezes eu queria explodir uma bomba perto dele.
– Como? Você queria matá-lo?
– Sim. Não. Outra pessoa, qualquer pessoa. Para que ele sofresse até a morte. Porque foi inaceitável.
– Inaceitável? O quê?
 – Eu tinha onze anos, apenas onze, e pedi um beijo: se ele me beijaria como beijava a mamãe. Ele negou. Argumentei que merecia. Já havia pedido outras vezes, mas não entendia exatamente o que estava pedindo. Não posso imaginar o que ele pensou, mas ficou um bom tempo pensando, longe, então me puxou pelo braço e colocou sua língua dentro da minha boca. Violento. Cinco ou dez segundos. Não achei aquilo inaceitável, mas ele se afastou; éramos companheiros. Ele se afastou por causa daquele beijo. Era curiosidade infantil! O senhor advogado lambendo a própria filha, ele deve ter pensado, parece um estupro. Aos dezesseis, eu fumava maconha, muita maconha. Desculpe estar falando isso para você. E meu pai Você largue a erva, Não pode sair da cidade, Você não pode, Você não pode. Eu achava que estava feliz, contestando a família, e tudo culpa dele, culpa do afastamento, por causa daquela merda de beijo estupro incestuoso. A época da faculdade, cinco anos, foi inteira assim. E teve a mamãe, a questão da mamãe. Na manhã da colação de grau eu fiz a bomba; eu cheguei a colocá-la na caixa de correio, que ficava no mercadinho. Arrependida, percebi o quanto as coisas estavam erradas. Eu precisava escapar antes que tudo piorasse e piorasse e piorasse. Meu pai Fique, temos o escritório para você, temos a clientela. Não. Mamãe calou-se. De carona, cheguei aqui; chorei por vários dias seguidos. Fumei por vários dias seguidos, centenas de baseados. Aquele homem do retrato, está vendo? Ele salvou minha vida.






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