Um Conto de Felipe Munhoz do Jornal Literário Rascunho
Texto
publicado na edição #169
O EX-ETERNO MARIDO
Por ocasião
do nosso aniversário de casamento — dois anos: dois anos tranquilos — minha
esposa, Eliane, presenteou-me com um […]
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Por ocasião do nosso
aniversário de casamento — dois anos: dois anos tranquilos — minha esposa,
Eliane, presenteou-me com um romance: O eterno marido. O romance foi escrito por Fiódor
Dostoiévski, em 1870; e talvez seja relevante confessar-lhe que Dostoiévski
figura entre meus autores prediletos. Junto ao livro, Eliane anexou um cartão
que dizia, entre outras particularidades, Para o meu eterno marido.
Comecei a ler naquela noite,
ansioso, após o jantar de comemoração. E fui logo envolvido pela angústia
aflita do protagonista Vieltchâninov, a quem o narrador segue — em sutil
onisciência — com exclusividade. Uma narrativa arrebatadora. Quando o
personagem está aflito, o texto está aflito; essa técnica, que é executada com
precisão, revela-nos o raro artista maior. No caso de Dostoiévski, a forma
também é conteúdo.
Com tais ideias fermentando, eu lia
o quarto capítulo do romance; era formulada uma teoria sobre mulheres “que
parecem ter nascido unicamente para serem esposas infiéis. (…) E tudo acontece
com a máxima sinceridade; elas se consideram, até o fim, justas no mais alto
grau e, está claro, de todo inocentes”. Tentei recapitular se havia alguma
conhecida, alguma amiga, Infiel-inocente.
Quando me percebi às voltas com o
parágrafo seguinte: “Vieltchâninov estava convencido de que realmente existia
esse tipo de mulher; mas tinha também certeza de que existia um tipo de marido
correspondente ao dessas mulheres, marido cuja única destinação seria a de
corresponder a esse tipo feminino. A seu ver, o caráter essencial de
semelhantes maridos consistia em serem, por assim dizer, ‘eternos maridos’, ou,
dizendo melhor, em serem, na vida, unicamentemaridos e” —
Correspondente?, pensei.
— “mais nada. ‘Um homem dessa
espécie nasce e cresce tão somente para se casar e, após o matrimônio,
tornar-se de imediato um complemento da esposa, mesmo que possua
indiscutivelmente personalidade própria. O principal indício de semelhante
marido é certo ornamento. Ele não pode deixar de ser portador de chifres, como
o sol não pode deixar de iluminar; e ele não só ignora o fato: de acordo com as
próprias leis da natureza, deve ignorá-lo’”.
Meus olhos debatiam-se no
parágrafo, relutavam em retornar às terríveis palavras, até que, derrotados,
mergulharam também na memória: mergulharam fixos no cartão Para o meu eterno marido. Para o meu Ela, Infiel-inocente? eterno marido. Para o meu eterno marido. Portador de chifres, como o sol
não pode deixar de iluminar. Eu, portador de chifres, portador de
chifres que não posso deixar de exibir.
Rasguei! o cartão. Atirei
Dostoiévski à lixeira.
Eliane, boa leitora e nada ingênua,
teria conhecimento do conteúdo do romance? Ou pior: Eliane teria o conhecimento
engavetado e agira de forma inconsciente? Ou pior:, ou pior:, ou. Não há
resolução. A única saída, ainda que arrasadora, é reescrever a primeira
sentença deste cruel relato: Por ocasião do nosso aniversário de casamento —
dois anos; tranquilos? — minha ex-esposa, Eliane, presenteou-me com um romance: O eterno marido.
O AUTOR
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